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PENSE DUAS VEZES ANTES DE ESQUECER

 

por AMÉRICA CUPELLO

A exposição “Pense duas vezes antes de esquecer”, evoca um instigante desafio, o de acercar-se de algo, que ansiamos esquecer; a certeza inquietante de nossa própria finitude. Se nos é impossível esquecer: o ninho, a ilha, a casa onírica - metáforas da morada primordial é talvez porque saibamos que, um dia, esses abrigos, esses verdadeiros refúgios naturais serão abandonados, e deles restarão apenas resquícios, ruínas vivificadas a partir de uma memória quase impalpável, pois se perde à medida que se alcança.



Foi a partir do livro A invenção de Morel de Adolfo Bioy Casares, uma novela surreal, que se passa numa ilha deserta de seres vivos, mas habitada por imagens, que este viés expositivo veio à tona. O personagem principal da fábula de Casares é um fugitivo que se apaixona por uma imagem de mulher. Paradoxalmente o personagem precisa morrer, para continuar vivo ao lado de sua musa, que ele descobre ser apenas uma imagem, um simulacro. A escolha deste triste afeto o faz permanecer na ilha, adquirindo um corpo não-matéria. Assim como o personagem de Casares, esta dupla de artistas, persegue uma sensação preciosa, a incessante busca da imagem corporificada do afeto e da memória. Se na ficção de Casares, esta imagem se realiza com a aparição “quase real” de um corpo sutil e ilusório, uma miragem que mimetiza corpos e gestos; as imagens dessa exposição por outro lado, procuram reinventar memórias afetivas, tendo como suporte a atmosfera imemorial das árvores e das ilhas.

Não à toa, Mônica Rubinho e Sidney Philocreon, elegeram a ilha e a árvore, como presenças marcantes em seu repertório, os lugares sagrados por excelência. E são estas imagens com as quais, torna-se premente conviver, que funcionam como portais para o acesso ao “espaço interior” e o “espaço vegetante”, que percebemos brotar nos instigantes objetos-ilha de Sidney Philocreon e também observamos nos cosmos arborescentes presentes às obras de Mônica Rubinho. Em ambos os artistas esta atitude onírica é permeada por qualidades como atenção, sutileza e assombro.


O repertório apresentado nesta exposição reflete um interessante paradoxo: a imagem-árvore no universo de Mônica Rubinho, ou imagem-ilha no cosmo de Sidney Philocreon remetem, cada qual em sua particular poética, à presença da morte (do esquecimento) na vida; e da vida (da memória) apesar da morte.


Desenhos, colagens, fotografias e principalmente, instigantes objetos, como o ninho e as ilhas – compõem os cosmos forjados na densidade íntima de um mundo denso, e ao mesmo tempo diminuto, na proposta visual de ambos os artistas. Um aspecto curioso e, ao mesmo tempo, fascinante que se destaca nas obras apresentadas por Mônica Rubinho e Sidney Philocreon é a forma como os temas da ilha, do barco, do corpo, da casa onírica nos são apresentados, enfatizados pela miniaturização entendida como condensação: dos afetos, das angústias, e das memórias.


Se por um lado Mônica Rubinho revela em seu repertório a prevalência de uma temporalidade vegetante, revelada no tema da imagem-árvore que obseda seus desenhos, colagens e fotografias, por outro lado, Sidney Philocreon instaura um cosmo diminuto, dramático e contido, banhado pela virtual presença de “letra e música”, pinçadas de árias operísticas, segundo o próprio artista: todas elas relações de amor extremado nos mais diversos contextos.


Esta proposta expositiva parece corroborar para que o espectador experimente uma outra temporalidade do olhar. Um tipo de olhar atento. Pois é preciso aproximar-se, ver com cuidado as nuanças, as palavras e frases que escorrem por meio de fitas, quem sabe metáforas de ondas e marés, que participam de um misterioso sistema nas atmosféricas ilhas-objeto de Philocreon. 
Perscrutar as camadas e películas é o que propõe Rubinho em seus desenhos, que revelam uma forma cuidadosa de velatura. A natureza de seus véus e películas aciona essa atenção, que torna o espectador próximo e partícipe da ficção que contempla.


A árvore para Mônica Rubinho é um ente cujo onirismo envolve uma estranha temporalidade, aquela que nos fita “por dentro”. O tema do vegetalismo e da arborescência destaca-se em suas obras, que remetem a um estado de vida germinal. Observamos na obra “Praça Central” um bonsai que floresce majestoso enraizado no próprio braço da artista. Percebe-se nessa fábula que o corpo é terra fértil a ser percorrida na temporalidade vegetante. Como a própria artista refere: a árvore é um ser que retém a memória do mundo, e vive intensidades. Mas ao escolher o bonsai - esta árvore tornada miniatura artificialmente – Rubinho efetua uma tarefa especialíssima, pois entende que a miniatura na lógica fabular pode guardar potências insuspeitas.


Na série intitulada “Regular Dream”, Mônica Rubinho retoma o aspecto selvagem do mobiliário doméstico que é reintegrado ao cenário arborescente original. Afinal armários, cadeiras, mesinhas revelam-se ícones da “casa na floresta”, ou da “casa na árvore” e devolvidos a sua origem, parecem reviver certo animismo vegetal. 
Afinal, qual desses artefatos não foi, um dia uma árvore?


Os instigantes objetos-ilha de Sidney Philocreon apontam para um cosmo quase intocado, como revela o próprio título da série, “Islands of the unwritten books”. Surpreende a escala que condensa a presença instigante de diminutos personagens ladeados por flâmulas com frases destacadas de libretos de óperas. Na pele translúcida das lâminas de vidro Philocreon desenha um animal domado, dentre tantos do bestiário que serializa, desenhando a partir do fraseado das óperas, nesse caso utiliza o libreto de Romeu e Julieta, o que pode ser constatado, se a obra for perscrutada atentamente. Percebemos esse compasso entre o silêncio e a música que repercute em toda sua obra, repleta de estratégias que pontuam sutilmente a ligação artista-espectador, no intuito de envolvê-lo, na ambiência solene que constrói. Suas diminutas ilhas condensam e dissimulam dramas arrebatadores contidos nas frases que recorta de óperas como Sansão e Dalila.


Se a música, ou seu fraseado, na obra de Philocreon pretende nomear o caos, a imagem de um pequeno barco que transporta espécie de relíquias de um estranho alfabeto, parece também querer transportar a desordem do mundo até nós, em sua tentativa de desrealizar a linguagem como a conhecemos. Pois este veículo, o barco carregado de palavras informes, parece retornar de um outro mundo, do mais além, quem sabe da terra dos imortais, onde a linguagem como a conhecemos é, para nós, desconhecida.


Ao refletir sobre a parceria entre Mônica Rubinho e Sidney Philocreon, arriscamos pensar num dueto musical, repleto de arte e de vida, cuja melodia remete com certeza, ao rumor imemorial das árvores, “dos livros não escritos” , dos ventos desérticos que habitam ilhas.


Lembramos, também, que a obra de ambos é tangida por um pathos peculiar – o lugar limiar, o entre-mundo que pertence, tanto a simbólica da árvore, que se situa entre dois mundos - dos vivos e dos mortos – mas também se faz presente no significado dual da imagem-ilha, ao mesmo tempo: refúgio e deserto; lugar do desejo e do interdito.


Uma lógica fabular percorre a obra de ambos, esta lógica, também foi percebida pelo filósofo Gaston Bachelard: “O grande sai do pequeno, não pela lei da lógica de uma dialética dos contrários, mas graças a libertação de todas as obrigações das dimensões, libertação que é a própria característica da atividade de imaginar”.


Libertos das falsas leis das dimensões, Rubinho e Philocreon nos oferecem um mundo em miniatura em sua insuspeitável potência. O repertório de ambos os artistas libera lembranças fictícias, que não deixam de ser memórias transformadas em imagens primordiais: a ilha perdida, a árvore, o refúgio, esses lugares ao mesmo tempo, tão distantes e tão familiares.






​América Cupello: fotógrafa profissional, curadora e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais no programa de pós-graduação da UFRJ.

Texto editado em catálogo por ocasião da mostra individual simultânea “Pense duas vezes antes de esquecer”, de Mônica Rubinho e Sidney Philocreon, na galeria Cosmocopa Arte Contemporânea – RJ - Brasil - Outubro de 2011.



link de catálogo virtualhttp://issuu.com/cosmocopa/docs/cosmozine_cor-mon_sid

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