A ESTRANHA IDEIA DE SER GENTE
por MÔNICA RUBINHO
Gente com vontades tão iguais e ao mesmo tempo tão singulares e íntimas, como a necessidade de ter memória, construir histórias, poder sonhar, amar, pensar, ter razão, ter identidade, estar viva por algum tempo, e saber disso, entre tantas outras coisas. Essa idéia de parentesco íntimo e coletivo entre os seres humanos está presente na minha produção através de objetos, instalações, fotos, desenhos.
É possível localizar em minhas obras momentos de deslocamento do tempo pela memória, permitindo uma diversificada possibilidade de leitura subjetiva, propondo experiências de cumplicidade e incômodo constrangedor (às vezes) com o observador. Experiência que surge pela presença de ideias elaboradas através do resgate afetivo da matéria, ou forma.
Sobre as obras, na maioria dos casos, referem-se diretamente à percepção simbólica e afetiva das coisas, estabelecendo limites entre o real e o representado de maneira sutil, através de materiais frágeis, sobreposições de camada veladas, representação gráfica sobrecarregada de traços finos que se esforçam em materializar imagens que existem como possibilidades de sonhos, reais enquanto desejos ou meramente por vontade de ser algo que ocupa um lugar vivo de significados.
PEQUENAS GRANDES ÁRVORES
Árvore de plástico tão real, um bonsai que posso plantar onde quiser, como árvores desenhadas que ganham corpos idealizados, segundo memórias que se entrelaçam em camadas de materiais.
Árvores surgem como personagens que carregam caladas e solitárias, um dicionário de momentos através de seus corpos, revelados ou materializados em diálogo poético com o entorno.
Minha produção, quando a iniciei em 1992, se estabeleceu quase que unicamente no plano tridimensional, através de objetos e instalações. Desde então persigo como assunto: o tempo, a memória, os sentimentos, situações poéticas de intimidade, isolamento e cotidiano.
Em 2004 comecei a desenvolver ensaios fotográficos usando cenas com detalhes de meu próprio rosto de olhos fechados, como que em devaneio onírico. Para firmar a idéia de sonho, crio camadas transparentes de papel com desenhos sutis, de possíveis pensamentos sobrepostos sobre as fotografias destes rostos, e refotografo. Como resultado tem-se o registro do instante do encontro entre as superfícies e a soma delas. Neste processo surgem estágios de presenças e memórias, que também tenho explorado através de desenhos e colagens em diversos formatos.
No momento, minha produção está com maior característica bidimensional. Não estabeleço uma técnica prioritária para trabalhar, desenvolvo ideias que necessitam de um determinado meio para se concretizarem. Não me considero fotógrafa, por usar o recurso da fotografia, mas que faço uso da fotografia para criar imagens “desenhadas com o tempo”. É difícil apalpar o tempo, às vezes, cabe nas mãos, outras vezes só dentro dos olhos, e em outras, fica transparente, quase invisível.
SOBRE A NECESSIDADE OBSESSIVA DE ABRIGO, SEGURANÇA E ACONCHEGO
Em algum lugar li que árvores são homens que não deram certo. E que como castigo foram transformados em árvores para ficarem presos, para sempre, pelos pés através das raízes¹. Não sei se concordo, pois se levar em conta esse desígnio, árvores seriam seres potencialmente tristes, sem recursos para mudar, comunicar, frutificar.
Em contraposição, são símbolo de crescimento, fortaleza, longevidade, beleza, com condição de proteger, dar frutos, sombra, e passam a impressão de que desejam criar raízes muito fortes que possam atravessar continentes, bem quietas e perseverantes, extraindo e transformando o que o meio pode lhes oferecer. Talvez sejam homens que aprenderam a dar certo, após não terem mais o que ser, a não ser eles mesmos, independente de tudo. E aí surgiram as comunidades das árvores, que mesmo da mesma espécie, cada qual com suas características árvore-homem preservadas. Árvores com desejos, sentimentos, vontades. São dessas árvores que falo quando as desenho de forma obsessiva, em conjunto com elementos concretos do cotidiano dos homens como casas, móveis utilitários, espaços vazios ou inundados de elementos.
A presença da casa surge com recorrência na minha produção, como símbolo de espaço de proteção e intimidade. Às vezes essas casas, sempre com textura de madeira, são blocos com forma de casa, mas sem portas nem janelas. E sem acesso aos seus interiores sugerem espaços de imersão sem conexão com o meio externo (por vezes nos vemos dentro dessa situação). Em alguns momentos parecem que possuem um núcleo com histórico preservado, outras vezes podem estar ocas, cheias de nada, podem acolher galhos ou árvores inteiras, ou completamente maciças de madeira.
As casas são cúmplices das árvores e vice-versa. Conversam entre si, se relacionam, vivem do mesmo ar e da mesma matéria. Suas texturas são como escrituras de suas existências. As casas ou outros elementos são extensões das árvores, se relacionam por semelhanças e também por contrapontos de diferenças e necessidades, concluindo um cenário cheio de metáforas do mundo dos homens, onde a figura humana não é representada plenamente, somente sugerida.
O limite entre o real e o devaneio, está presente como uma metáfora a situações de duplo sentido ou como gatilho de anseios de realizações de desejos e vontades particulares, e ao mesmo tempo muito comuns entre as pessoas. Comuns como a necessidade de ter memória (histórias de vida), não ser enganado, poder sonhar, desejar e ter identidade, ter lugar de privacidade, ter um lugar com paredes, janelas e portas para morar, e outras pessoas (árvores) para compartilhar.
1 - Todas as vezes que leio e repasso este trecho me esforço muito para lembrar a referência desse pensamento, encontrar uma pista dentro de meus guardados mentais, mas não consigo, desculpem. Independente desta falha de memória, interessa-me muito a imagem e a simbologia que essa frase sugere.
Mônica Rubinho: artista plástica
ensaio – 2010 / 2011